20 de jan. de 2013

Pobres na moda


O mundo de Hollywood continua a influenciar as tendências de moda e o êxito de filmes como “Os Miseráveis” – um dos grandes nomeados para os Óscares – deverão trazer para a passerelle, e para as lojas, influências do grunge e do punk para looks que exaltam o chamado luxe-pauvre. 

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Pobres na moda
O contraste de estilos do mundo da moda já chegou a um cinema perto de si. Por um lado, há o híper-ornamentado de marcas como Balmain, Gucci e Valentino. Do outro lado, o minimalismo de Céline ou Jil Sander. Nos cinemas, os trailers do cheio de brilho “O Grande Gatsby”, o filme de Baz Luhrmann que deverá chegar na próxima primavera, contrasta com “Os Miseráveis”, de Tom Hooper, a mais recente interpretação da história de Victor Hugo da exploração na França do século XIX.
“O Grande Gatsby” mostra a sumptuosidade da Era Dourada em todo o seu esplendor. Em “Os Miseráveis”, contudo, os quatro papéis femininos principais – Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Samantha Barks e Helena Bonham Carter – dão corpo a roupas simples e funcionais dos pobres urbanos: desde o esfarrapado da rua aos uniformes das fábricas e camisas finas como papel em tons terra, átonos. Mas isso não quer dizer que o filme não tem motivos de interesse para quem gosta de moda, bem pelo contrário.
A Vogue americana dedicou 10 páginas do seu número de dezembro ao filme “Os Miseráveis”, às suas estrelas e aos seus figurinos, enquanto os sites de estilo estão já a analisar “como se vestir como a sua personagem favorita de “Os Miseráveis””. E com os designers a inspirarem-se em Hollywood e vice-versa, é provável que o look do filme se torne um dos mais influentes em 2013.
A simplicidade há muito que é uma estética da moda. Em França, em particular, a simplicidade de um vestido tem uma paradoxalmente longa e extravagante história. Nos anos de 1770, Marie Antoinette rebelou-se contra a formalidade restritiva de Versailles e preferiu as camisas brancas, sem estrutura, que as mulheres coloniais das Caraíbas usavam. Juntamente com chapéus e aventais, este visual era adequado às vontades “rústicas” da rainha: ordenhar vacas e tratar das ovelhas (cujo pelo era perfumado e tingido em cor-de-rosa). Mas representaram uma partida chocante do tradicional vestido “à la française”, cujas saias volumosas, caudas longas, mangas com laços e superfícies em seda cheias de brocados, laços e joias eram símbolo da distinção de quem as usava. Ao menosprezar estes elementos, Marie Antoinette acabou por minar toda a hierarquia social do antigo regime. 
Mas não foi só a forma casual, falso campestre, do vestuário da rainha que atraiu críticas. O seu elevado custo também levantou controvérsia: apesar da musselina e do linho não serem tão luxuosos como as sedas lionesas usadas na corte, que por serem produzidos no estrangeiro eram muito caros. Ainda pior, as importações procediam de dois inimigos de longa data de França: a Inglaterra e a Áustria. O desejo rústico da rainha foi visto não só como extravagante mas também como anti-francês: graves ofensas numa altura em que muitos dos seus súbditos eram muito pobres e em que o futuro do reino, mergulhado em dívidas, parecia nubloso. A rainha recebeu, por isso, uma alcunha que haveria de a perseguir até à guilhotina: Madame Déficit.
Um escândalo semelhante emergiu em 1884, quando uma das nobres mais ricas de Paris, a Princesa de Sagan, organizou um “baile dos camponeses” no seu palácio em Saint-Germain. Os extravagantes 1.500 convidados foram arrastados não dos campos mas da aristocracia, cujos membros acharam divertido mascararem-se como os seus supostos inferiores, embora em variações caras e pitorescas do tema.
Edouard Drumont, um comentador de direita, ficou horrorizado e avisou que ao vestir de bom grado os trapos das ordens inferiores, os convidados de Sagan se tinham desonrado, condenando a França à anarquia. Com efeito, alguns anos depois, anarquistas bombardearam o palácio de Sagan. Aparentemente, as imitações dos camponeses ofenderam tanto os revolucionários como os reacionários.
Desde então, apropriações marcantes da pobreza incluíram o luxe-pauvre (como Paul Poiret batizou as criações do dia a dia em jersey e tweed) de Coco Chanel e as camisas de camponês de Yves Saint-Laurent – experiências levadas ainda mais longe em 2000 pela infame coleção Homeless de John Galliano para a Dior, com conjuntos aparentemente costurados com pedaços de jornal em seda e cintos e pulseiras improvisadas a partir de lixo de luxo e garrafas de bebidas vazias.
Na altura, a coleção de Galliano, satirizado como Dérélicte na comédia “Zoolander” (2001), foi atacada pela sua insensibilidade. Mas isso não diminuiu o burburinho de antecipação em relação às roupas elegantemente gastas que podem ser vistas no filme “Os Miseráveis”.
No romance de Victor Hugo, a empregada fabril Fantine empreende uma batalha corajosa mas sem esperança contra a brutal injustiça e exploração. Para alimentar a filha, é forçada a vender o cabelo, o seu medalhão de ouro (o único tesouro) e os dois dentes da frente. Contudo, tal como representada por Anne Hathaway e vestida por Paco Delgado, Fantine parece incrivelmente chique. Enquanto trabalha na fábrica, usa uma elegante bata em azul royal com uma touca estruturada a combinar que lembra o véu nupcial minimalista de Balenciaga nos anos 60, recentemente retomado por Nicolas Ghesquière no desfile para a primavera-verão 2012. As roupas de Fantine quando não está a trabalhar incluem um encantador vestido simples em rosa pálido. Mesmo quando bate no fundo, quando perde a sua joia e o seu cabelo, ela mostra um certo glamour. O corte de cabelo acentua a sua estrutura óssea. A gola do seu vestido sóbrio lisonjeia o seu longo pescoço sem adornos.
Mas Fantine não tem o monopólio do estilo. Éponine (Samantha Barks), na sua némesis de rica a pobre, calcorreia as ruas sujas de Paris com uma camisa puída verde-azeitona que representa uma versão distinta da alta moda da “blusa de camponesa”, coordenada com uma saia ao estilo de YSL do mesmo género, e cingida na cintura com um cinto de couro largo desbotado.
Em contraste, a Madame Thénardier de Helena Bonham Carter parece quase opulenta, tendo em conta os intricados bordados no seu casaco vermelho-sangue. O casaco, contudo, não tem uma das mangas: um toque punk, ao estilo de Vivienne Westwood, que funciona bem com o padrão da sua saia, já para não falar das luvas sem dedos em castanho-lama, o cabelo de Medusa, as meias largas e as botas em couro gasto. O conjunto quase pede um regresso do grunge às passerelles – um desenvolvimento já visto na coleção para a primavera-verão 2012 de Dries Van Noten.
Estes voos no luxe-pauvre deverão levar os designers a preencherem os seus quadros de inspiração e os consumidores atentos às tendências das lojas. Uma perspetiva um tanto ao quanto inquietante, tendo em conta a assertiva condenação das diferenças sociais e económicas que tornaram o romance de Victor Hugo num trágico clássico. Embora na sua música “I Dreamed a Dream” (Sonhei um sonho) Fantine cante um mundo melhor, mais equilibrado, as possibilidades são que os fãs da moda vejam a sua performance e se embrenhem num mundo diferente, onde o empobrecimento e as privações ganham a marca de chique consumado.
Fonte: Financial Times

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